Caim.

“Por que quer ficar me contando histórias, mago?”

“Para você entender o que está querendo. Ser imortal não é simples como você pensa. Primeiro escute-me e depois tome uma decisão definitiva, caçador.”

“Eu já tomei minha decisão, mas vou escutar o que tens a me dizer.”

“Melhor assim, caçador.”

Sarator inicia então o relato de uma história ocorrida nos primórdios da vida na Terra, muito antes do tempo em que a humanidade passou a se reconhecer como tal. Uma história dos dias dos filhos de Adão e Eva, os irmãos Caim e Abel.

Logo após Eva cometer o sacrilégio de ceder à tentação da serpente e comer do fruto proibido, eles foram obrigados a abandonar o Éden e seguir adiante, agora condenados a uma vida mortal, imersos na certeza de que seus corações já não estavam totalmente protegidos do pecado.

Trabalhando e tentando viver como podiam em sua nova condição, Adão e Eva perpetuaram a espécie humana ao terem dois filhos, Caim e Abel.

“Eu conheço esta história, mago. Caim matou Abel.”

“Nada de pressa, meu nobre amigo. Deixe-me prosseguir.”

Muitas são as versões sobre o dissídio entre os irmãos que culminou no primeiro homicídio da história da humanidade, mas poucas falam sobre a influência maligna de Lúcifer. Tanto Caim quanto Abel trabalhavam de sol a sol para manter uma vida simples, porém sem necessidades, ao lado de seus pais. Com o ardil que lhe é característico, Lúcifer passou a inspirar Caim, fazendo-o enxergar que seus pais amavam mais Abel, que ele era o filho preferido e o mais abençoado.

A cada dia em que Abel prosperava, a cólera crescia no peito de Caim. Ele não percebeu que deixou de prosperar no exato momento em que passou a invejar o irmão e a alimentar apenas sentimentos sombrios. Vingança, inveja e ódio passaram a dominá-lo.

Voltando-se em orações vazias para Deus, sem sinceridade e sem esforço verdadeiro, Caim acreditou não estar sendo ouvido pelo Senhor. Foi nesse momento que Lúcifer encontrou espaço, não concedido por Deus, mas aberto pelo próprio coração de Caim.

Certo dia, enquanto trabalhava na lavoura, reclamando e insultando a Deus, a serpente aproximou-se. Ao vê-la, Caim sobressaltou-se e ergueu a foice para ceifar-lhe a cabeça, mas a cobra ergueu-se à sua altura e falou.

“Trabalhas demais e não recebes reconhecimento nem de tua família nem daquele que chamas de Deus.”

“Quem é você? Nunca vi serpente falar. És o demônio.”

“É verdade que carrego esse nome, mas eu reconheço teu valor, Caim. Reconheço teu esforço.”

“Mentes.”

“Por que mentiria? Teu pai e tua mãe só valorizam Abel. Teu Deus só valoriza Abel. E eu, que te valorizo sem pedir nada em troca, sou repelido por ti? Pense, Caim. Se eu não me importasse, estaria aqui?”

“Não sei.”

“Além disso, tua mãe já me ouviu no passado. E graças a isso, hoje existem você e teu irmão.”

“Um irmão maldito.”

“Sabe por que tua mãe ama mais Abel do que a ti? Porque ela vê nele a remissão dos erros dela e em você os próprios pecados que cometeu.”

“Como assim?”

“Você prospera, Caim?”

“Não.”

“Abel prospera?”

“Sim.”

“Ela vê nele não apenas redenção, mas também a fortaleza de sua velhice. Como você cuidará deles sem prosperar? Isso mostra como teu Deus só se importa com Abel. Você quer que tua mãe te veja como a fortaleza dela?”

“Quero.”

“Quer prosperar?”

“Quero.”

“Então o único caminho é remover do teu caminho aquilo que te bloqueia.”

“Abel.”

“Exatamente.”

“Mas como?”

“Enquanto ele viver, você viverá à sombra dele. Ele deve desaparecer.”

“Vou matá-lo. Assim conquistarei meu lugar junto de meus pais e a vida eterna prometida por Ele.”

“A vida eterna, Caim, eu posso te dar. Não voltarás a cultuar um Deus que te virou as costas, não é?”

“Tu podes me dar a vida eterna?”

“Sim. Basta trazer-me um cálice com o sangue de teu irmão.”

“Assim será.”

Sem hesitar, Caim colocou seu plano em prática. Espreitou o irmão e tirou-lhe a vida. Como pedido, levou um cálice com o sangue de Abel até o local onde encontrara a serpente.

“Extirpou a vida daquele que te fazia viver como o segundo?”

“Sim. Aqui está o cálice.”

Assumindo forma humana, a serpente tomou o cálice e, cortando o próprio pulso, deixou seu sangue misturar-se ao de Abel antes de devolvê-lo a Caim.

“Como prometido, darei a vida eterna. Beba.”

Sem dúvida, Caim sorveu todo o líquido. Um relâmpago ribombou e o fogo do inferno tomou-lhe as entranhas. Após a agonia, Caim levantou-se transformado.

“O que fez comigo, Maligno?”

“Dei-te o que querias. Vida eterna.”

“E esta sede que me consome?”

“Para viver eternamente, precisarás alimentar-te de sangue humano.”

“Você me enganou.”

“Não. Eu cumpri o acordo.”

“Você me amaldiçoou.”

“Não precisa ajoelhar-se diante de mim. Apenas alimente-se e traga-me mais seguidores da noite.”

Em uma explosão de enxofre, Lúcifer e Caim desapareceram da Terra.

“Você quer dizer que Caim foi o primeiro vampiro?”

“Sim. Segundo manuscritos antigos.”

“E por que me contaste tudo isso?”

“Para que entendas que escolhas moldam destinos. A de Caim foi destruída por desejar exatamente o que você deseja.”

“Mago, isso só reforça minha decisão.”

“Tens certeza?”

“Desde o início.”

“Então farei o que desejas. Mas nada depois disso será problema meu.”

“Não se preocupe. Eu serei o problema dos amaldiçoados desta terra.”

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