Na casa vazia, enquanto procura o local onde escondeu o dinheiro, o velho mafioso Vitório da Silva continua contando sua história para o repórter.
“E aí eu resolvi esconder o dinheiro para o caso de ser preso.”
“Como o senhor foi.”
“Sim, mas naquela época a gente não tinha ideia se um dia sairia da cadeia. Se não fosse por você, eu ainda estaria preso e nós não estaríamos aqui procurando o dinheiro.”
“Eu fiz o que achei certo. Você pagou por todos os seus crimes e pela justiça atual no Brasil poderia ser solto devido à idade.” Ele bate com a picareta mais uma vez e o som produzido é oco. “Acho que encontrei.”
O repórter então cava mais um pouco em volta do local da batida e desnuda a arca em que Vitório colocara o dinheiro. O dinheiro maldito que o levou à cadeia. O velho, enfraquecido pela idade, até tenta ajudar, mas não tem forças. O repórter puxa a arca para fora do buraco com extrema dificuldade e quebra o cadeado para poder ver o conteúdo. Todo o dinheiro, como dissera Vitório, está ali dentro e o repórter se deslumbra com os dólares. Um golpe de sorte, já que a moeda corrente no Brasil sofreu tantas mudanças que hoje, se o dinheiro que estivesse ali fosse a moeda nacional da época, de nada valeria o esforço da vida do meliante. O repórter, hipnotizado, não percebe o movimento de Vitório nem se dá conta de suas palavras.
“Sabe por que este dinheiro é maldito, repórter?”
“Não, senhor Vitório, por quê?”
“Porque todos que o viram ou tocaram morreram.”
Se o repórter tivesse como pensar em tudo após os fatos decorridos naquele momento, ele não levaria a dúvida para seu caixão. Como um homem de setenta anos que não conseguiu ajudá-lo a retirar a arca do buraco teve forças para levantar aquela marreta e atingi-lo três vezes na cabeça para matá-lo?
Um ano atrás.
“Então o senhor está me garantindo que no Brasil teve máfia?”
“Não entenda a máfia na mesma concepção dos americanos, mas sim, ao nosso jeito, teve uma máfia nos anos setenta, sim.”
“E é por isso que o senhor está preso?”
“Não. Eu estou preso porque meu advogado era ruim. Eu sou inocente.”
“Como todos nesta prisão alegam.”
“Exatamente. Você não sabe que todos que estão aqui presos são inocentes?” Ele ri.
“E o que o senhor pode me contar sobre esta máfia?”
“Se eu contar, vou ter que te matar depois.”
“Um pouco difícil isso, não acha?”
“E por quê?”
“Porque o senhor está preso.”
“Esqueceu que no início da nossa conversa eu te garanti que no Brasil existiu a máfia?”
“E daí?”
“Você acha que todos os matadores da máfia já estão presos ou mortos?” Ele gargalha, e o repórter visualiza uma brincadeira.
“O senhor é muito espirituoso. Então, o que pode me contar?”
“Eu vou te contar a história completa da minha vida. Desde meu nascimento em 1944. Está disposto a ouvir?”
O repórter liga seu pequeno aparelho mp3 e prepara seu bloquinho para tomar notas.
“Sou todo ouvidos, senhor.”
“Muito bem. Vamos lá então.”
O velho criminoso inicia seu relato, retornando à manhã cinzenta de 1º de fevereiro de 1944, na cidade de Magé, interior do Rio de Janeiro. Sem condições de levar sua esposa a um hospital para que pudesse dar à luz com tranquilidade a seu primeiro filho, João da Silva, um pobre pedreiro, como tantos Joões e tantos Silvas no país naquela época — e ainda hoje —, teve que correr cinco quilômetros até a casa de Dona Fulgência, uma velha parteira que, além de parteira, era tida como uma feiticeira nos arredores do bairro, para que ela pudesse auxiliar sua esposa Maria no parto.
Como a vida de todo João e toda Maria neste país não é fácil, o parto também não seria. Depois de seis horas sofrendo com dores e dilatações, ela finalmente deu à luz ao interlocutor da história. Uma criança pequena e mirrada, que já de novinha iria sofrer com as agruras de uma vida parca e simples. Ao ver aquela criança miúda em seus braços, veio-lhe à cabeça o nome certo para ele: Vitório da Silva. Como dizia uma letra de funk dos anos 1990, era só mais um Silva que a estrela não brilha, mas, como toda regra tem uma exceção, Vitório iria se tornar uma delas.
Na infância, não aconteceram muitas coisas que eu possa dizer que tiveram grande importância, à exceção de uma coisa — e esta, sim, mudou a minha vida. Exatamente como na música do Legião Urbana, Faroeste Caboclo, eu vi meu pai morrer com um tiro de soldado da polícia militar. Meu pai estava no boteco tomando sua cachacinha de lei enquanto eu jogava búlica com os colegas em frente ao boteco.
“Peraí, búlica? O que é isso?”
“Você não teve infância não, seu repórter? Búlica é um tipo de jogo de bola de gude em que a gente tem que acertar os buraquinhos feitos no chão. As búlicas. Você foi criado onde?”
“Nasci no Flamengo e passei toda a minha vida lá.”
“E nunca jogou bola de gude?”
“Para dizer a verdade, não.”
“Foi criado à base de leite com pera também? Pela vovó e sem cueca?” O velho solta uma estrepitosa gargalhada. “Aposto que também nunca tocou uma punheta.” E gargalha novamente.
Irritado, o repórter desliga o mp3 e responde sério para o homem.
“Podemos voltar ao relato da sua vida ou vai continuar me chacoteando?”
“Chacoteando? O moço esqueceu que eu não tenho instrução.”
“Quer dizer sacaneando. Então vamos continuar ou eu ainda sou objeto de zombaria?”
“Calma, seu moço. Eu sou um pobre velho de setenta anos que só conversa com outros presos. E aqui a gente não pode sacanear ninguém, senão sai daqui num saco preto. Me perdoe.”
“Muito bem. Vamos continuar.” O repórter então religa o aparelho.
O velho reinicia seu relato.
“Bom, meu pai estava tomando a cachacinha de lei dele no boteco e eu jogava búlica do lado de fora quando dois meganhas entraram esbaforidos no bar. Naquele dia eu aprendi que meganha nervoso faz merda, e foi o que eles fizeram. Os dois vermes — é assim que criminoso chama a polícia agora, né? Verme. Bem, os dois vermes entraram no boteco fazendo um estardalhaço danado. Eu ouvi gritos e a voz do meu pai. Parecia uma briga e nós entramos para ver. Na verdade, era meu pai tentando não ser preso, confundido com um marginal. Como em briga que tem polícia o inocente sempre leva a pior, meu pai levou dois tiros no peito e morreu ali mesmo.”
“E o que o senhor fez?”
“Outra criança qualquer teria se ajoelhado e chorado. Corrido para casa para contar para a mãe. Eu não fiz nada disso. Apenas olhei bem nos olhos dos dois meganhas e marquei bem a cara deles.”
“Para quê? Para matá-los quando estivesse mais velho?”
“Eu não precisei ficar mais velho. Um deles resolveu me pegar pelo braço e me levar não sei para onde. O azar dele é que meu pai em casa tinha uma espingarda de chumbinho e já tinha me ensinado a atirar. Quando o meganha me levou para fora, eu puxei a arma dele do coldre que estava roçando no meu rosto e dei-lhe um tiro na perna. Ao ouvir o tiro, o outro saiu de arma em punho, mas, como eu disse, minha mira já era boa e eu acertei ele no pescoço. Pura sorte, na verdade. Eu tinha mirado na barriga para fazer ele sofrer. O outro tentava se arrastar para longe de mim e eu, fria e calmamente, me aproximei dele e dei o confere na cabeça dele. Voou miolo para tudo que é lado. Larguei a arma no chão e corri para casa. Não sei se foi por causa de eles terem matado meu pai sem motivo ou pela cidade ser pequena, mas nada me aconteceu por matar os dois vermes.”
“Deu sorte.”
“Providência divina, talvez. Eu aprendi bem novo como me livrar de um desafeto.”
“E depois?”
Neste momento, toca a sirene que informa que a visita chegou ao fim.
“Vai ficar para outra vez, doutor.”
“Eu volto na próxima visita, senhor.”
“Tudo bem. Eu não vou a lugar nenhum mesmo.”