Abadia de Annecy. O santuário monástico erigido às margens do lago de Annecy, um dos lagos mais lindos da França, é habitado hoje por monges progressistas. Tão progressistas que instituíram uma nova prática para com a comunidade: o batismo noturno coletivo no lago. Dizem os monges que a luz da lua refletida nas águas transforma a paisagem em algo tão belo que seria um pecado não aproveitar tal espetáculo com algo tão profundo e importante quanto o batismo. Assim sendo, monges e batizandos preparam tudo às margens do lago para que a cerimônia seja a mais bela possível.
Com o cair da noite, as pessoas que serão batizadas se vestem a caráter para a cerimônia e os convidados se acomodam de maneira a assistirem, pela primeira vez, a um batismo em um lago e à noite, todos num misto de desconfiança e curiosidade, mas ainda assim bem-dispostos e alegres pela celebração.
Com a lua alta no céu, o monge Jean Louis, recém-chegado à abadia, inicia o ritual de batismo coletivo. Ele entoa cânticos em latim com os braços alçados ao céu enquanto os monges na água começam a molhar as cabeças das pessoas. E aí inicia-se o inesperado: alguma coisa agarra as pernas de um dos que estão recebendo a bênção e o puxa para o fundo do lago. O monge Jean Louis muda seu cântico em latim para algo que os monges dentro da água percebem ser uma invocação. O monge invoca algo maligno das profundezas daquelas águas. Algo que só ele sabia que existia por ser um monge corrompido, um seguidor do diabo. Uma mulher e uma criança são puxados para o fundo do lago e o pânico finalmente se instaura.
Monges e batizados tentam deixar o lago e as pessoas que estavam na assistência tentam correr em pânico, mas não adianta. De dentro do lago, formas escuras demoníacas se lançam para fora das águas tentando ceifar o máximo de vidas que conseguem e saciar-se em seu sangue. A água do lago vai tomando um tom rubro enquanto os demônios atacam, desmembram e dilaceram aqueles que não conseguem sair. As pessoas continuam tentando fugir. Algumas rezam, mas parece de nada adiantar e o fim se aproxima mais e mais. E é justamente na hora mais sombria que Deus age com sua força de justiça.
“Saciem-se, meus meninos. Esta noite é sua.” grita o monge. “Esta noite, ahhhh…”
O monge é atingido por uma flecha atirada do meio das árvores. Os demônios urram ante o ataque a seu libertador e dois deles partem para o bosque em busca do atirador. Dois urros de dor e silêncio. Os demais demônios estacam, como que sem entender o que aconteceu. Duas figuras saem do bosque: uma com uma espada na mão e um arco pendurado nas costas; a outra com duas espadas menores nas mãos. Mesmo em desespero de fuga, alguém reconhece uma das figuras.
“Deus seja louvado, estamos salvos. É Furio Archetti.”
À menção do nome do padre Combattenti, as pessoas se enchem de esperança na salvação e os demônios, que sabem muito bem quem é o padre, abandonam a caça às pessoas e avançam na direção dos dois. O monge atingido pela flecha é carregado para dentro da abadia a fim de tentar uma nova cartada contra o inimigo.
“O maldito está fugindo para a abadia, Furio.”
“Ajude as pessoas, Richter. Eu vou atrás do monge.”
Enquanto Richter segue as orientações e começa o massacre aos demônios com a ferocidade que lhe é característica, o padre Combattenti abre caminho em direção à abadia.
Furio entra na abadia e encontra o cenário caótico que se abate lá dentro. Corpos de vários monges esquartejados pelo chão, alguns ainda com demônios a comer-lhes as entranhas e beber seu sangue. Um verdadeiro festival tenebroso. Tais demônios avançam em sua direção para encontrar a morte nas espadas de Furio. Ele olha em volta para tentar encontrar um rastro que o leve até o monge maldito e encontra sangue fresco nos degraus da escadaria, no fundo do salão, indicando que subiram.
Cautelosamente, o padre sobe as escadas e se depara com o corredor das celas dos monges. Um cântico se inicia. É o sinal de que Jean Louis ainda vive e tenta, de todas as maneiras, não só fugir da morte ante a força e a fé de Furio, bem como levar morte e destruição ao campeão de Deus.
Andando devagar pelo corredor, Furio reza para que Deus não o abandone e o guie na missão a ser cumprida. Ele passa por um espelho e não percebe uma sombra. Uma mão cadavérica segura seu braço e o puxa em direção à lente. Furio entende: a intenção é levá-lo para dentro do espelho e, consequentemente, para mundos inferiores, senão o inferno. O braço de ferro atinge a mão cadavérica, mas ela não larga nem se quebra. Ele olha para o espelho e vê seu próprio reflexo, esquelético, a rir para ele num esgar de escárnio.
“Seu destino, Furio. Nada de braço bento. Nada de seu Deus. Somente as brumas infernais a te cercar e teu fim sob a loucura da tortura de todos os demônios que mandaste para cá.”
“Nunca, demônio. Nunca.”
Furio tenta desvencilhar-se do aperto. O demônio no espelho é mais forte do que ele pensa ou poderia imaginar e, para piorar, no fundo do corredor, de dentro de um espelho maior, uma mulher caminha em sua direção. Demônio como todos os outros, mas uma velha conhecida de Furio.
“Lilith.”
“Furio Archetti. Já faz um bom tempo.”
“Não tanto quanto eu gostaria, demônio.”
Furio faz mais força tentando soltar-se do aperto de sua imagem no espelho enquanto Lilith caminha calmamente em sua direção. Se não se livrar logo, ele vai perecer sob a espada chamejante que a mulher carrega. A ideia lhe vem rápido à cabeça e ele tenta. Com o braço bento, desfere um soco contra o espelho. A lente arrebenta-se num estrondo e ele é jogado contra a parede do estreito corredor.
“Inteligente, Furio, mas você acaba de me fazer um grande favor.”
De dentro da armação do espelho quebrado, mãos cadavéricas tentam apoiar-se, buscando puxar o corpo do portal aberto por Furio.
“Ainda não.” diz Furio, arremessando uma adaga na direção da mulher demônio, que a segura.
“Patético.”
“Será mesmo?”
Com a adaga presa à mão pelo selo imposto por Furio, Lilith percebe a intenção do padre. Ele entoa em latim palavras de poder que a enviarão de volta pelo portal do espelho enquanto joga água benta no corpo que se alça do espelho destruído. O ser demoníaco que tenta sair se recolhe, dando tempo a Furio de fechar a passagem com escritas rúnicas na parede ao seu redor. Ao mesmo tempo em que termina a inscrição nas paredes, conclui as palavras de poder e Lilith começa a ser sugada de volta ao espelho.
“Eu voltarei, padre.” diz Lilith, sendo tragada.
“Estarei te esperando, demônio.”
Correndo para a última cela, de onde Jean Louis entoava seus cânticos, Furio, que embora já tenha visto muita coisa nesta terra, surpreende-se mais uma vez ao observar uma figura enlameada abandonando o corpo do padre de dentro de sua boca. O ser de lama vira-se para Furio e arreganha a boca, com dentes que mais parecem presas. Então se volta para a grade na parede que permite a entrada de luz e ar na cela e foge dali, arrebentando tudo. O prédio começa a estremecer. Um sinal claro de que a abadia virá abaixo após ter servido de portal para que aquele demônio viesse ao mundo e pudesse caminhar sobre a terra. Furio toma o caminho de volta correndo o mais que pode a fim de evitar ser soterrado por toneladas de terra e pedras.
Furio abandona o prédio pouco antes de sua ruína final. Observando o campo de batalha em que a margem do lago se tornou, verifica que seu amigo caçador Andreas Richter teve muito trabalho lá fora também.
“O que houve lá dentro, Furio? Eu vi um bicho de lama fugindo.”
“Lilith, como sempre. Ela conseguiu trazer aquele demônio para a Terra.”
“Lúcifer?”
“Não, mas muito provavelmente alguém que poderá trazê-lo daqui a algum tempo.”
“O que faremos agora?”
“Primeiro daremos um enterro digno a todas as pessoas mortas aqui e depois faremos o trabalho que nos foi incumbido por Deus.”
“Caçar o demônio.”